Uma análise do direito à saúde e à dignidade
Situação que frequentemente exige a intervenção judicial envolve famílias que enfrentam dificuldades financeiras para adquirir insumos indispensáveis para a saúde de seus entes queridos.
Um exemplo comum é a necessidade de fraldas descartáveis para pessoas com doenças degenerativas graves. Nessas circunstâncias, o papel do Poder Judiciário torna-se crucial para assegurar que o Estado cumpra seu dever constitucional de fornecer tais insumos. Neste artigo, vamos entender a importância do fornecimento de insumos médicos pelo Estado.
A Constituição Federal e o Direito à Saúde
A dignidade da pessoa humana é um dos pilares da Constituição Federal, conforme disposto no art. 1º, III da CRFB/88. O art. 6º eleva o direito à saúde ao status de direito fundamental, essencial para a manutenção de uma vida digna. A relação jurídica entre o indivíduo e o Estado impõe ao poder público a obrigação de garantir a efetividade desses direitos, conforme doutrina constitucionalista moderna.
O dever do Estado na prestação de saúde
Por sua vez, o art. 196 da Constituição Federal de 1988 assegura a todos os cidadãos o direito à saúde, estabelecendo o dever do Estado de promovê-la através de políticas sociais e econômicas. A Lei nº 8.080/90, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), reforça essa obrigação ao determinar a participação dos entes públicos nas diretrizes do SUS, sem distinção sobre o tipo de serviço ou ação a ser prestada.
A jurisprudência e a responsabilidade do Estado
O Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente afirmado que a inadimplência do Estado em garantir o direito à saúde constitui violação à Constituição. Em diversos precedentes, o STF reforça o dever do Estado de fornecer medicamentos e insumos indispensáveis, inclusive para pessoas financeiramente carentes.
Por se tratar de direito fundamental de segunda geração, impõe ao Estado uma prestação positiva. Sua inadimplência, consoante já advertiu diversas vezes o Supremo Tribunal Federal, importa em flagrante e inescusável violação negativa à Constituição:
“PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. (...) (RE 393175 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12-12-2006, DJ 02-02-2007 PP-00140 EMENT VOL-02262-08 PP-01524 – grifou-se)
A solidariedade dos entes federativos
Ademais, a responsabilidade pela prestação da saúde pública é solidária entre União, Estados e Municípios. Essa solidariedade está consolidada na jurisprudência, como indicado no enunciado nº 65 da Súmula do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A doutrina também reconhece a possibilidade do cidadão hipossuficiente escolher qual ente federativo acionar para garantir seu direito à saúde.
“Deriva-se dos mandamentos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei n. 6.080/90, a responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios, garantindo o fundamental direito à saúde e consequente antecipação da respectiva tutela”. (grifou-se)
A necessidade de uma prestação eficiente e a tutela de urgência
O serviço de saúde deve ser prestado de forma eficiente, conforme o art. 37 da CRFB/88, portanto, o administrador público não possui discricionariedade para decidir sobre a conveniência da prestação desse serviço, principalmente quando se trata de direitos fundamentais como a vida e a dignidade humana.
Nos casos em que o paciente não possui recursos para arcar com despesas essenciais, como as fraldas descartáveis prescritas pelo médico assistente, o Estado é obrigado a fornecê-las. A Lei nº 8.080/90, que regula o SUS, inclui a assistência terapêutica integral, abrangendo medicamentos e insumos como fraldas descartáveis.
A regulamentação e o dever do Estado
Além disso, a regulamentação do SAD (Serviço de Atenção Domiciliar) pela ANVISA determina que devem ser providos todos os materiais necessários, incluindo fraldas higiênicas. A jurisprudência do TJ-RJ também apoia essa obrigação, conforme entendimento exemplificado abaixo:
“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CONSTITUCIONAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. FORNECIMENTO DE FRALDAS GERIÁTRICAS.
Ação de obrigação de fazer ajuizada em desfavor do Município de Saquarema e do Estado do Rio de Janeiro, cuja pretensão é o fornecimento de fraldas geriátricas.
Demandante, que logrou comprovar ser portadora de incontinência urinária, necessitar do referido insumo e não dispor de recursos próprios para adquiri-los.
Tese recursal, fundada em alegação de existência de programa social de aquisição de fraldas por preços acessíveis, que não tem o condão de afastar o direito da autora ao fornecimento gratuito destes itens essenciais à sua saúde de bem-estar, com o prestígio do princípio da dignidade da pessoa humana.
"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Inteligência do artigo 196, da Constituição Federal, de 1988.
Aplicação, ainda, dos artigos 6º, 23, inciso II e 198, da Carta Magna e das Súmulas 65 e 179, deste Tribunal de Justiça.
Obrigação solidária dos réus, que impõe a estes fornecerem os insumos pleiteados. Precedentes do STJ e desta Corte estadual. Manutenção da sentença de procedência. Recurso a que se nega provimento.”
(0010509-20.2014.8.19.0058 - APELACAO / REMESSA NECESSARIA. Des(a). DENISE LEVY TREDLER - Julgamento: 14/09/2023 - SEXTA CAMARA DE DIREITO PUBLICO (ANTIGA 21ª CÂMARA CÍVEL – grifou-se)
Não bastasse, o enunciado nº 179 da Súmula do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro estabelece que:
"Compreende-se na prestação unificada de saúde a obrigação de ente público de fornecer produtos complementares ou acessórios aos medicamentos, como os alimentícios e higiênicos, desde que diretamente relacionados ao tratamento da moléstia, assim declarado por médico que assista o paciente."
Portanto, é inquestionável que o direito à saúde é uma prerrogativa jurídica fundamental, indissociável do direito à vida e à dignidade humana. A responsabilidade solidária entre União, Estados e Municípios para a prestação de serviços de saúde é clara e consolidada tanto na jurisprudência quanto na doutrina. Desta forma, o Estado deve fornecer insumos essenciais, como fraldas descartáveis, especialmente quando os beneficiários não possuem recursos financeiros para adquiri-los.
Quando se verifica a violação do compromisso constitucional de prestação de serviços de saúde, cabe ao Poder Judiciário intervir para garantir a primazia da Constituição. A tutela provisória de urgência é um mecanismo eficaz para assegurar que os direitos à saúde e à dignidade humana sejam respeitados imediatamente, evitando danos irreparáveis.
*Eduardo Duarte, advogado especializado no direito da saúde.
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